Os desafios de António Guterres
29 de maio de 2019António Guterres torna-se o primeiro português a receber o prestigiado prémio internacional, atribuído desde 1950 a personalidades que tenham contribuído para a unidade do continente europeu.
O comité que atribui o prémio anunciou em janeiro passado a atribuição do galardão de 2019 ao antigo primeiro-ministro e Alto Comissário da ONU para os Refugiados, apontando que o atual secretário-geral das Nações Unidas é "um destacado defensor do modelo europeu de sociedade, do pluralismo, tolerância e diálogo, de sociedades abertas e solidárias, do fortalecimento e consolidação da cooperação multilateral".
Turbilhão de intempéries
Em pouco mais de dois anos como secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres teve de enfrentar um turbilhão de intempéries. Apesar do avanço de nacionalismos em várias partes do mundo, o ex-primeiro-ministro português protagonizou a assinatura dos pactos globais para migração e refúgio, foi uma voz ativa no combate às mudanças climáticas e traçou uma agenda de reforma ampla da Organização, com foco em resultado e eficiência.
Um dos pilares da agenda de reforma da ONU é o setor de segurança e paz. Em pronunciamento no início deste ano, Guterres afirmou que a arquitetura de paz e segurança da Organização "está a ser fortalecida para aumentar a prevenção, a mediação, a manutenção e a construção da paz". "Um novo paradigma de gestão está a ser implementado", complementou.
Gerrit Kurtz, investigador do King's College, em Londres, explica que as metas de Guterres são ambiciosas, mas enfrentam uma série de obstáculos. "Ele está em dificuldades. Ele tornou-se secretário-geral em tempos em que o multilateralismo está com baixa popularidade em todo o mundo, quase ao mesmo tempo em que Donald Trump tornou-se o Presidente dos Estados Unidos", afirma o analista.
"Portanto, em relação a países específicos e a alguns líderes mundiais, ele está a ser mais silencioso, cauteloso e hesitante em confrontar quem quer seja diretamente. Por isso, está a receber críticas. É muito difícil colocar isso na balança, mas em alguns casos ele poderia ser mais expressivo", acrescenta.
Apesar das críticas de alguns setores, António Guterres recebe esta quinta-feira (30.05) em Aachen, na Alemanha, o Prémio Internacional Carlos Magno (Karlpreis, em alemão). A premiação, que é uma das maiores condecorações da Alemanha, reconhece a dedicação do nono secretário-geral da Organização em "revitalizar e consolidar a cooperação multilateral baseada nos valores e objetivos da União Europeia e da ONU".
"Um mediador imparcial"
Natural de Lisboa, o nono secretário-geral das Nações Unidas assumiu as funções a 1 de janeiro de 2017 depois de dirigir por dez anos o Alto Comissariado da ONU para Refugiados (ACNUR). Além de primeiro-ministro de Portugal, foi presidente da Internacional Socialista. Quando ainda era candidato ao mais alto posto da ONU, Guterres sinalizava o que desejava para o cargo de secretário-geral.
"Desde que ele seja, obviamente, um mediador imparcial, desde que ele seja visto por todos como um catalisador com um poder de convocatória e possa merecer o respeito de todos para ter a capacidade de mobilizar todos em relação ao que é a prevenção de conflitos, quer a solução de alguns destes que, como todos sabem, se vêm arrastando por algumas décadas", declarou.
Segundo o analista Gerrit Kurtz, o aparente silêncio de Guterres em algumas questões globais sensíveis é estratégico. "Penso que este é um movimento deliberado", sublinha. "Para ser efetivo na defesa do multilateralismo, da democracia e dos direitos humanos, ele também precisa do apoio dos Estados Membros. E isso está a ser muito difícil, não apenas por causa dos EUA, mas também da União Europeia com o Brexit. Isso dificulta as possibilidades de Guterres ser mais expressivo, porque muitos países que outrora apoiavam a agenda da ONU agora estão divididos", explica o investigador do King's College.
Atuação em África
Segundo o analista angolano-português Eugénio Costa Almeida, Guterres chegou à Organização com ideias genuinamente avançadas, mas algumas delas inexequíveis, como a reforma do Conselho de Segurança.
"Na prática, ele ainda não conseguiu nada. Fazer alterações gerais na ONU sem também ter em linha de conta as alterações no Conselho de Segurança – e há muito se vem falando da integração como membros de pleno direito de países africanos, latinoamericanos e asiáticos – não é possível. Enquanto não houver uma negociação plena entre os cinco países com direito de veto, com particular relevância, EUA, Rússia e China, não creio que secretário-geral algum consiga fazer levar por diante as alterações que propõe", afirma o analista.
Para superar esses impasses, Guterres está a colocar maior foco na prevenção de conflitos, afirma Robert Muggah, diretor de pesquisa do Instituto Igarapé.
"Ele está a operar um ambiente muito desafiador para tentar renovar e inspirar mais investimentos na manutenção da paz. Em tempos em que os recursos estão escassos e a vontade política está a diminuir, ele quer prevenir que conflitos ocorram para que não se gaste tanto dinheiro com as operações de manutenção. E essa é uma medida muito importante e bem-vinda", diz o investigador.
O analista diz que Guterres tem tentado apoiar avanços na transição democrática em vários países de África, como Etiópia e Argélia. Mas em relação à Guiné-Bissau, a ONU tem feito pouco.
"A ONU tem tido um papel muito pouco relevante. No entanto, não quer dizer que Guterres por vezes não tenha chamado a atenção para os factos importantes, que alguns fazem, como se costuma dizer, ouvidos de mercador."
Em relação às missões de paz da ONU em África, Eugénio Costa Almeida considera que "tem alguns sítios com alguma capacidade de vitória e mostrando manutenção, noutros claramente [as missões de paz] são pouco compreendidas ou mesmo respeitadas, ainda que haja países que individualmente tenham conseguido manter uma certa estabilidade, como o Mali [onde atua a MINUSMA]".