"É preciso uma aldeia inteira para educar uma criança."
Esse é um dos provérbios africanos utilizados com mais frequência nos últimos tempos. Quer nos grupos de mães, pais e educadores que enfrentam o desafio de criar e educar crianças numa sociedade cada vez mais individualista, no qual a vida comunitária muitas vezes é solapada pelas tensões de um mundo acelerado e desigual que acarreta num abandono velado de nossas crianças; quer num país que convive com números alarmantes de mães-solo, mulheres que contra sua vontade (na maior parte das vezes) se viram obrigadas a criarem sozinhas seus filhos e filhas, sem contar com a presença afetiva emocional e financeira dos pais das crianças, ou tendo que lidar apenas com a "ajuda" que eles por ventura queiram dar.
Mas a realidade é que sim: para termos uma sociedade saudável, com crianças seguras e felizes, é necessário que uma aldeia inteira se responsabilize pela educação do universo infantil.
Numa perspectiva menos romântica, mas igualmente poética, no Brasil, o dever comunitário pela preservação da Infância foi consumado por meio de promulgação do ECA, o Estatuto da Criança e do Adolescente. Publicado em 1990, tal Estatuto é parte de uma série de preocupações que organizaram o Brasil durante seu período de redemocratização, momento histórico do qual a nossa própria Constituição faz parte. Em linhas gerais, o objetivo principal do ECA é criar uma lei que vise a proteção integral à criança e ao adolescente, determinando uma série de direitos que esses sujeitos devem ter preservados.
É possível que muitos de nós já tenhamos naturalizado a necessidade dessa proteção e do próprio ECA, o que me parece algo extremamente positivo de nossa parte. Mas não é necessário aprofundar muito o debate para lembrarmos que no Brasil existem infâncias e infâncias – a depender da cor, gênero e condição socioeconômica da criança em questão. E por aqui, não podemos esquecer que a adolescência é um campo em disputa, sobretudo quando estamos tratando de jovens periféricos e não-brancos, cujo adolescer pode ser brutalmente interrompido pela necessidade de trabalhar, ou pela ausência de horizontes de expectativas, fazendo com que esses jovens sejam tratados como adultos estruturalmente perigosos – haja vista o insistente e perverso projeto de redução da maioridade penal que vez por outra entra no debate público.
As adversidades e violências que crianças e adolescentes podem ter que lidar são muitas – e nem entramos em assuntos como pedofilia e abandono infantil. Mas é preciso enaltecer o fato de que o Brasil é um país que está minimamente atento para tais questões, a ponto de transformar sua atenção num instrumento legal.
Oportunidade de ser aldeia
Dentre os múltiplos instrumentos que compõe o Estatuto da Criança e do Adolescente está o Conselho Tutelar. De acordo com o Instituto de Direito Coletivo, tal Conselho Tutelar é "um órgão autônomo, previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), que tem como principal missão zelar pelo cumprimento dos direitos infantojuvenis, atuando de forma preventiva e intervindo sempre que seus direitos forem ameaçados ou violados". E essa talvez seja a dimensão mais conhecida desse órgão, uma função que, de alguma maneira, faz parte do repertório do universo infanto-juvenil.
Mas o que muita gente não sabe, é que as pessoas que compõe esse Conselho, são eleitas pelos cidadãos brasileiros a cada quatro anos. E uma das razões pelas quais as eleições para conselheiros tutelares não serem tão conhecidas reside no fato delas não serem obrigatórias. Curioso que a ausência da obrigatoriedade faça com que tais eleições possam parecer de menor importância, quando não são. Conhecer e eleger a pessoa que será responsável por resguardar legalmente a integridade e segurança de crianças e adolescentes não é só um exercício cidadão, mas um compromisso com a democracia e uma aposta no futuro. Mesmo porque, conforme dito, existem diferentes percepções de infância e adolescência, e de como essas fases da vida podem ser experimentadas. Também cabe a nós definir qual infância e adolescência queremos.
Neste domingo (01/10), ocorrerá em todo Brasil a eleição dos conselheiros tutelares que irão atuar entre os anos de 2024 e 2027. Pela primeira vez na história do país, a eleição será nacional e contará com a participação do Tribunal da Justiça Eleitoral – o que tornará o processo mais rápido e seguro graças ao uso das urnas eletrônicas. Muitas prefeituras estão divulgando os nomes e as posições dos candidatos ao Conselho Tutelar. Busquemos tais informações, pesquisemos o/as candidato/as, levemos nossos títulos de eleitores e façamos nossas escolhas.
Essa é uma boa oportunidade de sermos aldeia.
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Mestre e doutora em História Social pela USP, Ynaê Lopes dos Santos é professora de História das Américas na UFF. É autora dos livros Além da Senzala. Arranjos Escravos de Moradia no Rio de Janeiro (Hucitec 2010), História da África e do Brasil Afrodescendente (Pallas, 2017), Juliano Moreira: médico negro na fundação da psiquiatria do Brasil (EDUFF, 2020) e Racismo brasileiro: Uma história da formação do país (Todavia, 2022), e também responsável pelo perfil do Instagram @nossos_passos_vem_de_longe.
O texto reflete a opinião da autora, não necessariamente a da DW.