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EducaçãoBrasil

Expansão de "especialistas" sem formação: um grave problema

Vinícius de Andrade
Vinícius De Andrade
13 de junho de 2024

Influenciadora aprendeu procedimentos médicos numa apostila de 43 páginas. O resultado foi a morte de um homem de 27 anos. Problemática dos perigosos "especialistas" sem formação exige atenção e regulamentação própria.

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Microfone com monitores de computador em segundo plano
Um computador, um microfone, uma câmera: para alguns, basta para ser "especialista" em alguma coisaFoto: cesareferrari667/Pond5 Images/IMAGO

Foi num curso online de cerca de um mês, e através de uma apostila de cerca de 43 páginas, que Natália Becker, autointitulada esteticista, aprendeu o procedimento de peeling técnico de fenol. A formação, infelizmente, não foi bem-sucedida: sua irresponsabilidade e negligência resultou na morte de um homem de apenas 27 anos.

Numa reportagem transmitida pelo Fantástico no domingo (09/06), ela simplesmente não quis responder uma das perguntas mais simples e básicas que poderiam ser feitas. "Qual a sua formação?"

Ela se dizia estética e cosmetóloga e até exibia com muito orgulho o título de especialista em melasma em suas redes sociais. No entanto, em nota enviada ao programa dominical, a própria Associação Nacional dos Esteticistas e Cosmetólogos a desmentiu e afirmou que Natália é "uma pessoa leiga atuando como esteticista".

Aqui acredito que estamos diante de um problema em dois níveis: institucional e individual. Na prática, não há necessariamente uma divisão visual, mas acredito que valha a divisão no nível de didática.

Muitas vezes o problema começa nas instituições

Há alguns dias, em viagem, estava à mesa de almoço com uma família. A mãe, professora particular de matemática; o pai, economista, e atuou por anos como professor de uma universidade privada de excelência; e a filha, estudante de medicina.

Não lembro como começou o papo, mas falávamos sobre como algumas instituições de ensino superior não têm qualquer tipo de preocupação com a qualidade da formação. Eu até citei o fato de que a filha, pelo menos, estava num curso que há uma estrutura mínima de qualidade em qualquer que seja a instituição. A mãe me disse que não era bem assim não: citou alguns casos de universidades em que mesmo o curso de medicina é perigosamente desprovido de qualidade.

Lembrei de uma universidade privada com alcance nacional e que tem caixa o bastante para vincular publicidades no horário nobre. Num dos comerciais, com duas grandes celebridades brasileiras, a instituição se orgulhava de mensalidades absurdamente baratas. Parecia que estavam vendendo um produto na feira ou um plano para celular. Era muito claro que aquele valor não pagava os custos básicos para uma formação sólida nas áreas oferecidas.

A instituição se maquiava de uma espécie de Messias da democratização do acesso a um diploma, mas tratava-se apenas de uma maquiagem para a realidade, que era a completa não preocupação com a qualidade das formações oferecidas.

Vejo casos assim diariamente nas redes sociais: graduações, cursos técnicos, cursos online e n tipos de outras formações oferecidas por instituições que, para um olhar um pouco mais atento e treinado, fica claro que simplesmente não há um compromisso com a qualidade, com a ética ou para com a ciência.

Redes sociais aumentam grupos de "especialistas" sem formação

Nas redes sociais, há um certo fetiche em acrescentar o título "especialista" no perfil e isso em todas as áreas possíveis. Está em desenfreada expansão o grupo dos "especialistas" sem formação. Estes vão além dos simples "juízes da internet", que apenas focam em comentar todas as publicações, dando opiniões sobre o que não entendem. O grupo descrito aqui na coluna vai além e vende palestras, formações e serviços, assumindo, sem qualquer pudor, a posição de detentores de formações que nunca realizaram.

Quantas vezes a influenciadora Maíra Cardi já teve falas problemáticas acerca da área de nutrição e emagrecimento? Não duvido que ela tenha um bom coração e acredito, sim, que realmente valorize a saúde, mas ela simplesmente não tem nenhum tipo de formação científica na área. Nesse contexto, todas suas falas são pautadas, muitas vezes, em achismos e em formações tão rasas quanto a que a Natália fez para aprender a técnica do peeling.

Ela, no caso, chega a vender cursos, palestras e formações sobre o tema. Não está só e integra um time que faz um grande desserviço e apresenta total desprezo pela importância da ciência e de uma formação sólida, ética e responsável.

É curioso, pois podemos acreditar que as pessoas perderam a ambição de ter uma formação. No entanto, aparentemente elas querem sim, só não querem estudar para isso.

O problema é grave e requer regulação

O problema chegou a um nível que simplesmente não pode ser ignorado. O caso da falsa esteticista culminou na morte de um indivíduo, o que, de alguma forma, é o pior desfecho que uma negligência pode causar, mas há outros tipos de desfechos.

Entendo que o mundo de hoje não é mais o mesmo que o de décadas atrás. Entendo e aceito o poder da internet e sou grato pelo fato de que hoje vivemos num mundo em que temos acesso a informações sobre praticamente tudo. É encantador eu saber que posso, de forma online e gratuita, aprender sobre engenharia, direito e medicina. Mas isso não me torna um engenheiro, um advogado e muito menos um médico.

A externalização dessas falsas formações, sobretudo quando envolve lucro e contato direto com pessoas, simplesmente não pode acontecer. Não está certo alguém sem formação em nutrição vender cursos sobre emagrecimento. Não está certo alguém sem formação em engenharia ficar responsável por um projeto da área. A lista poderia continuar, mas acredito que entenderam a lógica.

Infelizmente há uma grande subestimação da ciência e de formações tradicionais. O caminho para mudar essa valorização na cabeça das pessoas será complexo, árduo e de longo prazo.

Até lá, precisará haver uma regulação, e em dois níveis: institucional e individual. No nível institucional, é preciso sofisticar a regulação das instituições de educação. O mundo mudou e entendo que seja um tanto quanto complexo, dada a grande quantidade de cursos online, mas um curso como o que a Natália fez não pode existir.

Já no nível individual, precisamos focar nos "especialistas" sem formação. Isso precisa ser proibido. É grave, negligente, antiético, imoral e, sobretudo, ainda que de formas diferentes, literalmente coloca vidas em risco.

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Vozes da Educação é uma coluna semanal escrita por jovens do Salvaguarda, programa social de voluntários que auxiliam alunos da rede pública do Brasil a entrar na universidade. Revezam-se na autoria dos textos o fundador do programa, Vinícius De Andrade, e alunos auxiliados pelo Salvaguarda em todos os estados da federação. Siga o perfil do Salvaguarda no Instagram em @salvaguarda1

Este texto foi escrito por Vinícius De Andrade e reflete a opinião do autor, não necessariamente a da DW.

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A coluna quinzenal é escrita por jovens do Salvaguarda, programa social de voluntários que auxiliam alunos da rede pública do Brasil a entrar na universidade.