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Por que tantos russos estão passando frio em suas casas

Darko Janjevic
19 de janeiro de 2024

Rússia possui uma grande infraestrutura de energia, mas a falta de manutenção, entre outros fatores, gera uma onda de apagões no sistema de calefação, em meio a um dos invernos mais rigorosos em décadas.

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Navio passa em rio com placas de gelo na superfície, diante do Kremlin
Mesmo Moscou e arredores foram atingidos por cortes no aquecimentoFoto: Vera Savina/AFP

Milhares de russos foram afetados, nos últimos meses, por falhas ocorridas nos sistemas de aquecimento de todo o país, incluindo Moscou e arredores, durante um dos invernos mais rigorosos das últimas décadas.

A onda de blecautes começou em dezembro de 2023 e não mostra sinais de parar. Na terceira semana de janeiro, pelo menos 16 moradores da cidade de Nizhny Novgorod sofreram queimaduras, quando um cano de calefação de grande diâmetro explodiu, despejando água fervente na rua.

A falha na tubulação também deixou mais de 3 mil sem aquecimento, de acordo com um canal de notícias local no Telegram. O serviço de mensagens é uma das poucas plataformas que os russos ainda usam para obter informações sem censura.

Justo na véspera do incidente em Nizhny Novgorod, falhas num complexo energético da cidade de Oryol cortaram o aquecimento de casas, jardins de infância e uma escola, onde água fervente jorrou dos aquecedores a vapor durante as aulas.

Sem aquecimento por dias

O colapso mais grave ocorreu no bairro de Klimovsk, em Podolsk, no oblast de Moscou, a apenas 50 quilômetros da capital. Em 4 de janeiro, a temperatura caiu para -34ºC – temperatura mais baixa registrada na área em pelo menos 40 anos. No mesmo dia, houve uma defeito numa usina de aquecimento de Klimovsk, deixando 20 mil habitantes sem calefação, num distrito de 50 mil.

Milhares ficaram isolados da rede de aquecimento por vários dias. Outras cidades e povoados da região também sofreram apagões de aquecimento por vários dias, em meio ao tempo extremamente frio. Os cidadãos de Elektrostal acenderam fogueiras em frente a seus prédios em sinal de protesto.

"As crianças dormiam com roupas quentes, eu e meu marido também estávamos usando calça, suétere e camisa, debaixo de dois edredons", contou uma moradora ao site de jornalismo investigativo russo The Insider. A temperatura em seu apartamento não passava de 10ºC até que ela começou a usar aquecedores elétricos.

Fábrica de munição fornece calor à cidade

As autoridades demoraram a reagir. O governador do oblast de Moscou, Andrey Vorobyov, levou três dias para emitir uma declaração oficial sobre a pane de Klimovsk, culpando os proprietários da "sala de caldeiras de propriedade privada" por permitirem que o colapso ocorresse.

Segundo ele, as autoridades abriram uma investigação. "Entendemos que a paciência de todos tem limite", disse durante um encontro com os cidadãos.

Homem usa espécie de maçarico para aquecer tubulação em escada de  prédio
Morador de Klimovsk, em Podolsk, aquece tubulação manualmente para tentar fazer sistema voltar a funcionarFoto: Evgenia Novozhenina/REUTERS

O governador também acusou os donos da usina de estarem inacessíveis durante a crise atual, lembrando que dois deles moravam no exterior. A questão aparentemente chamou a atenção do presidente russo, Vladimir Putin, o qual ordenou que Vorobyov nacionalizasse a instalação de aquecimento.

O atraso na reação pode ser devido à localização sensível da usina – que opera dentro de uma fábrica de munição. Tais acordos entre a indústria militar e a infraestrutura civil eram relativamente comuns na era soviética.

A fábrica de munição foi privatizada em 2001, e a estrutura de propriedade atual não foi divulgada. No entanto, relatos não confirmados na mídia russa indicam que seus gerentes tinham conexões de primeira linha no alto escalão do Kremlin.

O diretor da fábrica, Igor Kushnikov, é um ex-coronel da agência de inteligência russa FSB, de acordo com relatos da mídia. Em maio de 2023, ele assumiu a gerência da fábrica no lugar de Igor Rudyka – supostamente um dos ex-guarda-costas de Putin.

Em meados de janeiro, investigadores federais russos anunciaram a detenção de Kushnikov e do gerente da sala de caldeiras, Alexander Chikov.

Infraestrutura soviética em ruínas

Uma das acionistas da fábrica de munição de Klimovsk, Marina Saharova, que mora na Alemanha, disse que o motivo da falha não foi a instalação de aquecimento em si, mas as más condições em que se encontra a rede de calefação: a sala da caldeira teria sido fechada devido a falhas fora da fábrica.

Especialistas alertam que a infraestrutura de aquecimento da Rússia sofre de falta de manutenção e está defasada, especialmente nas áreas que aumentaram enormemente sua densidade populacional desde a época soviética. Mesmo agora, algumas partes do país ainda usam tubulações de aço datando de décadas atrás, muito além de sua vida útil, projetada de 25 anos, de acordo com o portal de notícias The Bell.

Os números oficiais citados pelo portal independente russo indicam que uma parcela de cerca de 3% da rede de aquecimento, água e saneamento é rotulada anualmente como estando em estado de "emergência". Ainda assim, apenas de 1% a 2% estão sendo modernizados, o que acarreta milhares de avarias.

A segurança representa um desafio adicional em instalações como a de Klimovsk. Devido às restrições de acesso à fábrica de munição, os funcionários civis não puderam preparar a sala da caldeira para o inverno nem monitorar os problemas em tempo real, afirma The Bell.

Rússia, superpotência energética?

Embora alguns incidentes relacionados ao aquecimento ocorram a cada inverno na Rússia, nesta temporada houve sucessivos colapsos do sistema em várias cidades, de Novosibirsk, na Sibéria, a Moscou e São Petersburgo, até o enclave ocidental de Kaliningrado.

A questão também tem peso emocional no país, que tradicionalmente se vê como uma superpotência energética. Após a invasão em grande escala da Rússia na Ucrânia, os propagandistas do governo emitiram alertas dramáticos sobre as sanções da União Europeia às importações de gás, alegando que a região "congelaria", sem acesso ao gás russo para seu aquecimento.

Quase dois anos após o início da guerra, no entanto, o aquecimento na Europa parece estável, enquanto as autoridades russas se esforçam para responder à crise doméstica de calefação. Esse contraste é apontado com satisfação pelos críticos de Putin e pelos usuários de língua russa da Ucrânia devastada pela guerra.

"Eles resolveram congelar a Europa, mas a coisa não funcionou. Então resolveram se congelar a si próprios para intimidar os outros", ironizou um usuário do YouTube num vídeo sobre os cortes energéticos na Rússia.

Homens com coletes alaranjados em rua perto de monte de lenha
Operários montam cozinha móvel para moradores durante blecaute na cidade de PodolskFoto: Evgenia Novozhenina/REUTERS

Moscou articula modernização

As autoridades russas também parecem estar cientes do problema. Recentemente, o Kremlin começou a assumir um papel mais direto na gestão da rede de aquecimento, e as autoridades federais sinalizaram que liberariam mais fundos.

"Ainda estamos usando a infraestrutura comunal construída durante a era soviética", disse Svetlana Razvorotneva, legisladora russa e membro do comitê para a engenharia urbana. "Não investimos em modernização. Em vez disso, investimos na manutenção de toda essa infraestrutura ultrapassada."

Ela acrescentou que uma parcela de cerca de 40% da rede de aquecimento comunal precisava ser substituída com urgência, e que o Estado russo pretende investir o equivalente a 1,68 bilhão de dólares nos próximos dois anos para a modernização do sistema.