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Preto é culpado, mesmo quando prova o contrário

Ynae Lopes dos Santos
Ynaê Lopes dos Santos
9 de março de 2023

A discussão sobre o perfilamento racial no STF deve ser encarada como política de reparação. O Judiciário tem uma dívida histórica com a população negra, ainda sentida na prisão racialmente fundamentada de milhares.

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Homem ao lado de camisetas com os dizeres "Vidas Negras importam #BlackLivesMatter" em varal em Porto Alegre
"Ainda que muita coisa tenha mudado na história brasileira, o componente racial se manteve como um pilar nas ações das forças policias do Brasil e no próprio ordenamento da Segurança Nacional."Foto: Diego Vara/Reuters

Alberto Meyrelles de Sant'Anna Júnior, Yago Correia, Vinícius Romão de Souza, Luiz Carlos Justino e Wilian da Silva Santos guardam semelhanças entre si: são homens, têm entre 20 e 40 anos, são brasileiros, são negros e todos já foram presos... injustamente.

Ao digitar "negros presos por engano" no Google, esses foram os primeiros de uma longa lista de nomes que apareceram em reportagens que atestam o que a população negra já sabe: preto é sempre culpado, até que prove o contrário – e às vezes, segue culpado depois de comprovar sua inocência.

A razão da prisão desses homens (ocorridos entre os anos 2020 e 2023) é relativamente simples: para a imensa maioria das forças policiais brasileiras, a cor negra da pele é mais do que um fator de suspeição, é sinônimo de culpabilidade.

E não para por aí (na verdade, o racismo nunca para).

Essa suspeição generalizada sobre a população negra se alastra Judiciário afora, e acaba se tornando o principal, quando não o único, fator de condenação desses homens (e também de muitas mulheres negras), ajudando a mover as engrenagens do encarceramento em massa, que atua como uma eficaz ação afirmativa no Brasil.

Racismo segue movendo o Brasil

Enquanto ainda temos debates e polêmicas calorosas sobre a adoção da política de cotas raciais nas universidades públicas do país, a constatação de que os presídios brasileiros são predominante pretos não causa muita comoção na opinião pública. Já foi naturalizado, e institucionalizado, que cadeia é lugar de preto.

Talvez essa seja uma forma simples, mas eficaz de mostrar como o racismo segue movendo o Brasil: inviabiliza ou dificulta a entrada de jovens negros nas universidades e institutos de ensino superior, enquanto recebe esses mesmos jovens negros de braços abertos nos presídios e demais centros de detenção do país.

No entanto, essa não é uma questão simples. Existem inúmeras camadas de violência e marginalização que precisam ser levadas em conta para compreender o fenômeno do encarceramento em massa – tema que vem ganhando um número cada vez maior de estudos. A falta de oportunidade para a população negra, jovem e periférica, a celeridade com a qual pequenos crimes são julgados, as penas desproporcionais para esses crimes, e é claro, a cor dos supostos criminosos.

Já escrevi isso aqui há algum tempo, mas é preciso continuar dizendo: a polícia é uma instituição que, no Brasil, teve sua criação vinculada à função de caçar escravizados foragidos. E como nos centros urbanos oitocentistas era difícil distinguir os escravizados dos negros livres e libertos, essa mesma polícia desenvolveu uma estratégia relativamente simples: prendia o negro para depois averiguar se ele/a era ou não o escravizado em questão (ou, o culpado).

Ainda que muita coisa tenha mudado na história brasileira desde 1808 (quando foi criada a Intendência Geral da Polícia da Corte), o componente racial se manteve como um pilar nas ações das forças policias do Brasil e no próprio ordenamento da Segurança Nacional.

Reportagens do final do século XIX e começo do século XX – período em que o Brasil engatinhava na sua condição de uma República sem escravidão –, apontam para uma vinculação direta entre a população negra (sobretudo os homens negros) e a vadiagem e a criminalidade. Vale dizer que nesse mesmo período, um dos grandes projetos nacionais era embranquecer a população brasileira, e o vetor deste embranquecimento seria justamente o trabalhador imigrante branco, que chegou aos milhões num país que se recusava a criar as condições para inserir a população negra no mercado de trabalho livre.

Durante a ditadura militar (1964-1985), falar sobre racismo se tornou um crime de segurança nacional. Na verdade, qualquer expressão que exaltasse a negritude foi encarada como potencialmente criminosa para os órgãos de repressão. Não por acaso, os testemunhos coletados no âmbito da Comissão Nacional da Verdade demonstram como as blitz se tornaram instrumentos cada vez mais presentes nas ações policiais. Todo jovem negro que vivesse em centros urbanos sabia que não poderia sair de casa sem documentos, sob o risco de ser preso por ser quem era: um jovem negro.

Perfilamento racial

Mais recentemente, o avanço das tecnologias fez com que reconhecimento facial se tornasse uma ferramenta da segurança pública. Esse sistema de algoritmos e softwares mapeou padrões nos rostos das pessoas, o que em tese ajudaria a polícia a fazer seu trabalho. Resultado: de acordo com a Rede de Observatório de Segurança, em 2019, 90% dos presos por esse sistema são pessoas negras. Não era para menos. Sendo uma invenção humana, a tecnologia pode e é usada a serviço do racismo, afinal: quem determina a cara desses suspeitos?

Sendo assim, a discussão sobre o perfilamento racial no Supremo Tribunal Federal que veio à tona nas últimas semanas não é apenas necessária, como deve ser encarada como uma política de reparação. O perfil racial não pode mais ser usado como um critério de culpabilidade nas acusações e julgamentos de pessoas consideradas criminosas. Os órgãos do poder Judiciário brasileiro têm uma dívida histórica com a população negra, uma dívida que infelizmente ainda se faz sentir na prisão injusta e racialmente fundamentada de milhares de homens e mulheres negros.

Porque não basta ser favorável à política de cotas nas universidades públicas. É preciso também garantir que toda a população negra tenha seus direitos constitucionais integralmente assegurados.

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Mestre e doutora em História Social pela USP, Ynaê Lopes dos Santos é professora de História das Américas na UFF. É autora dos livros Além da Senzala. Arranjos Escravos de Moradia no Rio de Janeiro (Hucitec 2010), História da África e do Brasil Afrodescendente (Pallas, 2017), Juliano Moreira: médico negro na fundação da psiquiatria do Brasil (EDUFF, 2020) e Racismo brasileiro: Uma história da formação do país (Todavia, 2022), e também responsável pelo perfil do Instagram @nossos_passos_vem_de_longe.

O texto reflete a opinião da autora, não necessariamente a da DW.

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Negros Trópicos

Ynaê Lopes dos Santos defende que não há como entender o Brasil e as Américas sem analisar a estrutura racial que edifica essas localidades; e que a educação tem um papel fundamental na luta antirracista.